top of page

Última Noite, A (25th Hour), de Spike Lee (EUA)

Por Carlos Alberto Mattos

O impacto imediato do 11 de setembro de 2001 sobre a indústria do entretenimento não foi pequeno. Sobre o cinema americano, foi ainda maior. O trauma do desastre alterou profundamente os planos de Hollywood. Filmes como "Collateral Damages", com Arnold Schwarzenneger, naufragaram antes mesmo de zarpar no mercdo. Roteiros tiveram que ser refeitos, cenas já filmadas foram extirpadas da edição, computadores entraram em cena para deletar signos dolorosos como as torres gêmeas que eram escaladas pelo Homem Aranha.

Os poucos filmes que encararam de frente o assunto o fizeram por uma perspectiva de sublimação emocional (como o documentário sobre os bombeiros no WTC) ou de especulação sobre o contexto político-ideológico do fato (os curtas "estrangeiros" de 110901). Mas nenhum retratou tão bem o estado de espírito que se seguiu ao atentado quanto Spike Lee em A Última Noite (25th Hour, 2002).

O fantasma das torres é um dado concreto para Lee, um signo de luto, mas também um objeto de meditação. Uma das cenas mais longas e estáticas do filme se passa ao lado de uma vidraça diante do Ground Zero, quando os caminhões ainda recolhiam detritos da maior catástrofe da história moderna dos EUA.

Um mal-estar percorre a espinha dorsal de A Última Noite. Difícil imaginar como seria esta adaptação do romance de David Benioff caso o projeto não fosse atravessado pela atmosfera do 11 de setembro. Spike Lee já tinha o roteiro pronto quando tudo aconteceu. Ele acabou tomando a história das últimas 24 horas de liberdade de um traficante de drogas condenado a sete anos de prisão como metáfora expressionista de uma Nova York tensa, deprimida e perplexa. 

Melhor do que qualquer documentário sobre o assunto, o filme descortina a cidade acuada em suas entranhas, tentando canhestramente manter-se viva nas ruas de bairros, boates, bolsa de valores etc. Mas a cidade não é o único responsável pelo incômodo que toma conta do filme. O itinerário insólito de Monty Brogan (Edward Norton) antes de se recolher ao presídio é uma espécie de via sacra onde cada "estação" é um confronto consigo mesmo ou com seus entes mais queridos. 

São todas relações muito difíceis. Com o pai (Brian Cox), Monty se divide entre a culpa e uma sombra de rancor, pois mesmo condenando a ocupação criminosa do filho, o velho bombeiro aposentado havia pago as dívidas do seu bar com o dinheiro sujo de Monty. Com a namorada, a negra porto-riquenha Naturelle (Rosario Dawson), Monty se consome em dúvidas - suspeita que ela o tenha entregue à polícia. Monty interage, ainda, com seus três melhores amigos: um corretor da bolsa (Barry Pepper), yuppie cínico que personifica o outro lado da moeda do generoso e mal-sucedido Monty; um professor retraído (Philip Seymour Hoffman) que não resiste às tentações de uma aluna chantagista (Anna Paquin); e um imigrante russo (Tony Siragusa), com quem ele atua no tráfico.

Em todos esses contatos, uma estranha ambigüidade dissolve as barreiras entre o afeto e a agressão, a sinceridade e a desconfiança. Isso não apenas torna as personagens complexas e desafiadoras para o espectador, como permite à dupla Lee-Benioff fazer de cada cena um pequeno debate. Eles parecem dizer: "prestem atenção nessa história porque nada aqui é simples". Tome-se como exemplo o desabafo de Monty diante do espelho (de si próprio), um quase-clipe de xingamentos contra os imigrantes, terroristas, policiais, minorias e todas as classes que compõem o tapete multiétnico e multicultural de NY. Como não ver nisso um misto de grito de revolta e declaração de amor pela cidade que Lee sempre tematizou em seus filmes?

Logo na seqüência de abertura, o filme oferece uma parábola sobre a generosidade. Monty socorre um cachorro ferido, que o agride impiedosamente. Mesmo assim, Monty insiste em dominá-lo e levá-lo para um veterinário. Na seqüência final, esse mesmo cão estará presente, fechando o ciclo da parábola. Mas as idéias de cura e superação ficam só por aí. No mais, prevalece uma sensação de derrota, nada lisonjeira para o país dos superpoderes e da autoconfiança. Spike Lee entende o quanto a América está perdendo com as guerras de Bush. Os créditos iniciais se sobrepõem à imagem do Tribute in Light, o memorial temporário que preencheu o vácuo das duas torres com jatos de luz azul. É a representação poderosa de um consolo apenas virtual. Da mesma forma, o tema da segunda chance, desenvolvido no último trajeto de Monty em companhia do pai, não passa de hipótese idealizada, visita efêmera a um tema clássico do cinema americano, mas inviável em quadro obscuro como este.

A Última Noite corre o risco de ser confundido com um produto nacionalista, se não atentarmos para a posição de seus signos. Faz, certamente, um lamento pela tragédia com sabor de penitência, aspecto devidamente sublinhado pela tocante trilha fúnebre de Terence Blanchard. Mas, em vez de ceder aos clichês do drama cívico, Spike Lee convida à reflexão e, por vias tortas, elogia a diversidade da "sua" Nova York. 

Os dois eixos do filme nem sempre se articulam satisfatoriamente. Fica uma impressão de que os comentários sobre a cidade pegam carona (às vezes forçada) no drama um tanto cool de Monty Brogan. Por outro lado, pode-se acusá-lo de tipificar cada vez mais seus personagens com traços muito fortes, no limite da caricatura. Só não se pode negar seu talento em lidar com esses mesmos tipos. "A Hora do Show" (Bamboozled) era um filme extraordinário com esses ingredientes.

Pode-se, ainda, apontar um certo descaso com as personagens femininas, aliás traço característico de grande parte da obra de Lee. Mas a vitalidade com que ele filma, a confrontação sempre estimulante com as questões sociais tornam seus trabalhos fascinantes e urgentes para além das deficiências. A Última Noite foi mais um êxito na carreira de um cineasta que não vira as costas para os temas mais delicados sugeridos pela realidade à sua volta.  

bottom of page