Comemore o centenário de Bergman na Cinemateca do MAM
Dia 14 de julho é a data oficial dos 100 anos de Ingmar Bergman (1918-2007) e a Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) já começa a celebrar em março o gênio do cinema. De 9 a 11/3, na Cinemateca, uma série de exibições e debates sobre a obra do cineasta.
Dia 9/3:
16h30 - Morangos Silvestres (Smultronstället),die Ingmar Bergman, Suécia, 1957. Com Victor Sjöström, Bibi Andersson e Ingrid Thulin. 91'. Legendas em português. Exibição em 35mm. Classificação indicativa 10 anos
18h30 – Quando duas mulheres pecam (Persona) . de Ingmar Bergman, Suécia, 1966. Com Bibi Andersson e Liv Ullman. 85'. Legendas em português. Exibição em 35mm. Sessão seguida de debate com os críticos Marcelo Janot, Mario Abadde e Susana Schild e mediada pelo presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, Rodrigo Fonseca. Classificação indicativa 14 anos
Dia 10/3:
15h30 – Fanny & Alexander (Fanny och Alexander) de Ingmar Bergman. Suécia/França/Alemanha Ocidental, 1982. Com Bertil Guve, Pernilla Allwin e Kristina Adolphson. 183'. Legendas em português. Exibição em 35mm. Sessão seguida de debate com os críticos Ricardo Cota e Luiz Fernando Gallego, e as integrantes da Sociedade Brasileira de Psicanálise Mônica Aguiar e Ana Sabrosa. Mediação do presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, Rodrigo Fonseca. Classificação indicativa 14 anos
Dia 11/3:
15h30 – O sétimo selo (Det sjunde inseglet) de Ingmar Bergman. Suécia, 1957. Comn Max von Sydow, Gunnar Björnstrand e Bengt Ekerot. 96'. Legendas em português. Exibição em 35mm. Sessão seguida de debate com os críticos Ricardo Largman, Filippo Pitanga e Marcelo Muller e mediada pela crítica Ana Rodrigues. Classificação indicativa 12 anos
19h-Sarabanda (Saraband) de Ingmar Bergman. Suécia/Dinamarca/Noruega/Itália/Finlândia/Alemanha/Áustria, 2003. Com Liv Ullman e Erland Josephson. 107'. Legendas em português. Exibição em bluray. Sessão seguida de debate com os críticos Daniel Schenker e Leonardo Luiz Ferreira e mediada pela crítica Ana Rodrigues. Classificação indicativa 16 anos
Aquecendo a memória sobre a obra do mestre sueco, uma transcrição do texto do crítico e pesquisador José Carlos Avellar que em abril de 1984 escreveu para o Jornal do Brasil sobre Fanny e Alexander, nosso destaque na Cinemateca do MAM, no dia 10.
“FANNY E ALEXANDRE” / FANTASMAS UNIVERSAIS QUE AJUDAM A PENSAR José Carlos Avellar (Publicado no Jornal do Brasil em 19/04/1984)
“Quando faço um filme me sirvo da experiência acumulada em 40 anos de trabalho em cinema. Minha profissão é uma profissão baseada na experiência. Na intuição e na experiência”, disse Ingmar Bergman em março de 82, entrevistado ao final das filmagens de Fanny e Alexandre.
Quando entrar hoje no novo Gaumont Copacabana para ver Fanny e Alexandre o espectador pode dizer que se serve da experiência acumulada em 30 anos de trabalho com o cinema de Ingmar Bergman . Pode dizer que irá ver a história da família Ekdahl baseado em sua intuição e experiência.
Bergman começou no cinema em 1944, quando, depois de alguns anos de aprendizado no estúdio, seu roteiro Hets (Tormentos) foi flimado por Alf Sjoberg. Dez anos mais tarde chegavam aos nossos cinemas Juventude, Eterno Tesouro (Sommarlek), de 1950, e Noites de Circo (Gycklarnas Afton), de 1953. Nos 40 anos que se seguiram à filmagem de Hets Bergman realizou 42 filmes e teve mais seis roteiros filmados por outros diretores. Nos 30 anos que se seguiram à estreia de Juventude e Noites de Circo o espectador pode ver outros 25 filmes de Bergman, além de ler 11 de seus roteiros editados em livros. Neste período, diz o diretor, que conserva e reexamina periodicamente todos os seus filmes em casa, “muitas coisas foram tiradas das imagens para torná-las mais leves e expressivas”. Neste período pode dizer o espectador, muitas coisas foram acrescentadas ao imaginário de quem vai ao cinema e passou pelos filmes de Bergman.
Quando entrar hoje para ver Fanny e Alexandre o espectador não estará guiado, assim como se encontra em tudo quanto é filme, apenas por sua intuição. Leva também a experiência adquirida com os filmes anteriores do realizador. Leva na memória, bem viva e em primeiro plano ou escondida lá no fundo como se nem estivesse lá, não importa, a lembrança de algumas frases e imagens que viu diretamente nos filmes ou que pegou ao acaso em conversa com amigos, ou rebatida num outro filme qualquer.
Leva uma frase de Cenas de um Casamento: o desabafo desesperançado de Johan (“alguém cuspiu na minha cara e eu morri afogado na cusparada”), ou o lamento sussurrado de Marianne (“às vezes é como se o homem e a mulher se falassem através de uma ligação interurbana em telefones defeituosos”). Uma frase de Face a Face, a explicação tranquila da avó que briga com o avô (“a gente precisa ter alguém para cuidar, alguém com quem a gente possa se irritar, senão a vida fica insuportável”). Uma outra de O Rosto, o berro meio incompreensível do ator bêbado (“minha doença é também meu meio de viver; estar vivo é ser um cadáver adiado e nada mais”). Uma ainda de Juventude, o grito desesperado da jovem Maria depois da morte do noivo (“viver é como sentir uma dor de dente na alma”).
Leva uma frase ou, mais provavelmente, leva uma imagem que nem sabe mais de onde veio: a imagem dos dois rostos de mulher que se misturam num só ocupando a tela toda (de Persona); a imagem do rosto da velha senhora von Merkens que no meio de uma festa, incomodada com o calor, pede licença a Johann e arranca a pele do rosto – pele que se desgruda como se fosse de borracha colada nos ossos do crânio (de A Hora do Lobo); a imagem do rosto de Agnes já sem ar e sem forças, se debatendo na cama, cercada pelas paredes vermelhas do quarto, morrendo aos poucos e gritando um grito sem som (de Gritos e Sussurros). E quantas outras? A briga de marido e mulher no encontro para assinar o divórcio (em A Hora do Amor)? O rosto cansado do velho professor Isak (em Morangos Silvestres)? Ou ainda o rosto tenso e imóvel de Eva enquanto a mãe, Charlotte, toca o prelúdio número dois de Chopin ao piano (em Sonata de Outono)? Quantas outras imagens?
Antes de o filme começar, antes da primeira imagem de Fanny e Alexandre tocar na tela, o filme já começou, que o espectador hoje chega ao cinema para ver um filme de Bergman carregando mil e uma lembranças. E Bergman chega ao cinema hoje carregando também personagens, lembranças e imagens de seus filmes anteriores. O espectador já sabe mais ou menos ao entrar no cinema que vai participar de uma espécie de cerimônia de exorcismo, que vai presenciar uma série de sofrimentos e humilhações. Em parte porque o diretor acredita mesmo que a vida é feita principalmente de sofrimento e humilhações, em parte porque o artista acredita que é preciso fazer assim, “pintar coisas aparentemente sem sentido para assustas as pessoas. Assustadas, as pessoas pensam, e quando pensam ficam um pouco mais assustadas”.
O espectador sabe que vai assistir a uma cerimônia de exorcismo, sabe bem que vai sofrer com os personagens, mas sabe também que todos estes grandes males são pintados só para dizer que a vida vale a pena ser vivida mesmo por suas pequenas coisas, como lembra Gustav Adolf Ekdhal num discurso ao fim de Fanny e Alexandre: “O importante é ser feliz, tão feliz quanto se possa, quando a felicidade se apresenta” – discurso montado com frases já encontradas no final de Gritos e Sussurros (no diário de Agnes), na conversa do cavaleiro Block com a morte em O Sétimo Selo e num desabafo menos desesperançado do Johann de Cenas de um Casamento.
O espectador sabe mais ou menos o que vai encontrar. Entra pra ver Fanny e Alexandre guiado pela experiência. Mas é sempre bom lembrar, com Bergman nunca se sabe demais, a experiência nunca é o bastante. Seu discurso de sempre, apurado, lapidado, sem as gorduras que, ele afirma, inchavam as imagens de seus primeiros filmes, aparece aqui melhor e mais bonito do que nunca. Lá estão alguns de seus personagens habituais. David. Vergerus. Gustav. Isak. Jenny. Parentes dos Vogler, dos Johann, das Alma, das Karin, das Marianne, das Agnes. Todos velhos conhecidos. Mas o diretor, hoje com 66 anos, está mais jovem do que nunca.
Ernst Ingmar Bergman nasceu em Uppsalá em julho de 1918, filho de um pastor da igreja protestante, Erik Bergman, e de sua mulher, Karin Akerblom. Nos 40 anos que separam a filmagem de Hets da estreia entre nós de Fanny e Alexandre ele não se ocupou apenas de cinema. Fez teatro, e muito. Este filme marca o seu retorno à Suécia depois de uma ausência de nove anos, motivada por uma briga com o Imposto de Renda. E marca também, ele disse, o final de sua carreira no cinema (mas em fevereiro último, durante o Festival de Berlim, Liv Ullmann anunciou que Bergman voltaria a filmar com ela, fazendo ainda este ano A Comédia Humana). Último filme ou não Fanny e Alexandre está construído como uma espécie de testamento. Bergman revê e reinventa sua história e a história de seus personagens. Fala um pouco de sua vida e um pouco de sua paixão pelo cinema e pelo teatro, um pouco de sua paixão pelos personagens que inventou ao longo destes anos.
Bergman está em Fanny e Alexandre do lado de dentro e do lado de fora da imagem. Ele está um pouco no garoto Alexandre, que se diverte com uma lanterna mágica e que sonha em fazer teatro, que vive num mundo de fantasia mas que dele é arrancado pelo rigor do padrasto. O personagem, é verdade, não vive as mesmas experiências vividas pelo diretor. Mas Bergman empresta a seu Alexandre (a julgar pelas confissões feitas no livro de entrevistas Bergman segundo Bergman) muito de si mesmo, e empresta ao pastor Edvard Vergerus e a Emile Ekdhal um pouco do comportamento de seus pais. Nada de biografia, por certo, que o que importa mesmo é montar uma ficção, inventar uma história livremente, criar alguns fantasmas. O filme, na verdade, corre na tela bem assim como o define a frase ainda tirada de Strindberg e lida quase ao final:
“Tudo pode acontecer, tudo é possível e verdadeiro. O tempo e o espaço não existem mais. A partir de uma base real insignificante, o autor libera a sua imaginação. Sonho e realidade são uma coisa só”.
Corre assim para dizer, meio amargo, que somos obrigados a conviver com os nossos pesadelos. E para dizer, meio satisfeito, que os pesadelos dos artistas (como lembra Gustav Adolf) são úteis porque uma vez que já foram sonhados não precisam mais invadir os nossos sonhos.