Filme Falado, Um de Manoel de Oliveira (Portugal)
Por Carlos Alberto Mattos
A passagem do boat-movie de Manoel de Oliveira pelos cinemas cariocas foi um dos acontecimentos mais impactantes da temporada de 2005. Muita gente se sentiu infantilizada pela forma como o mestre conduz o espectador através das referências incontornáveis da história da civilização ocidental, bem à maneira como a professora vivida por Leonor Silveira conduz sua filha no cruzeiro marítimo. Outros agradeceram ao mestre por ser tão claro e honesto em suas intenções.
Fala-se pelos cotovelos e tornozelos em Um Filme Falado (2003). Por trás da dialogação incessante, Oliveira sussurra em nossos ouvidos uma meia-dúzia de questões fundamentais sobre a relatividade do tempo e a fragilidade do estar no mundo.
Pode soar simplório demais analisar o filme por seu viés simbólico, mas não parece oferecer-se outra alternativa. Como não ver no trajeto entre o Tejo e as Índias uma alusão ao percurso das grandes navegações? Para Manoel de Oliveira, ser sofisticado não significa fugir do essencial ao propor uma discussão. Se for preciso regressar até o pecado original, ele o fará sem rodeios.
A partir da entrada das três mulheres desconhecidas (mas ironicamente interpretadas por musas célebres), e ainda um improvável comandante de navio na pele de John Malkovich, desenha-se uma versão civilizada de Babel. A compreensão idiomática não chega a anular a profunda diferença entre cada uma dessas maduras representantes da União Européia: a empreendedora francesa, a modelo italiana que não conseguiu transformar beleza em felicidade e a atriz-cantora grega que se orgulha de suas raízes convertidas em museu. Nesse colóquio de alegorias, o comandante John Walesa personifica, naturalmente, o rumo a seguir: o império americano, muito embora o navio siga literalmente para Bombaim.
Esse passeio pela herança cultural e pelas boas maneiras do Ocidente não vai terminar sem ser abalado por uma derradeira surpresa. Algo que sinaliza, literalmente, o fim da História, da esperança e de uma idéia de civilização convenientemente protegida contra o caos. A perversidade de Oliveira (95 anos ao fazer esse filme) está viva e rija, alimentada agora pela paranóia contemporânea de quem se vê na posição de alvo.
Está lá também o célebre pessimismo lusitano. A notória ambigüidade do cineasta no trato com as perdas e os complexos portugueses tem uma nova e brilhante atualização nos dois planos finais de Um Filme Falado. Dali em diante, o silêncio se instala e somos bruscamente devolvidos a nós mesmos.