Edifício Master, de Eduardo Coutinho (Brasil)
Por Denise Lopes
Edifício Master (2002) é cachoeira. E das boas. Cachoeira, pororoca, rio caudaloso... É emoção em cima de emoção. A vida de pessoas comuns, como eu e você, contada em primeira pessoa. Recriada em relatos. Pedaços desprendidos aqui e ali. Desventuras. Aventuras. Desamores. Amores. Coisas assim. Mostradas com tamanha sinceridade e compreensão, que faz doer, corar, rir, chorar até mesmo o mais incrédulo. Se saí do cinema aturdido a perguntar: como ele conseguiu captar tudo isso? Como escolheu tão bem o que deixar? Percebesse claramente a intenção em não criar rótulos, estereótipos, conclusões. Talvez, fazer um registro. Um recorte. Seria Eduardo Coutinho um padre? Alguém que, invariavelmente, suscita no outro o desejo da confissão? Ou seria um psicanalista? Um mago? Capaz de nos transportar aos mistérios mais recônditos da "alma" humana? Pois é assim que Edifício Master se constrói: como mágica e devoção ética, filosófica... para aquele que parece ser o mais caro de todos: o homem. O resultado transcende. Não quer ser um estudo sociológico, antropológico... Nem mesmo um documentário no estilo clássico do termo. Despido de pretensões, Edifício Master revela o que há de melhor em cada um que fita. E que o fita.
É assim que uma jovem, que escreve poesias em inglês e pinta quadros, "como válvula de escape", para ter dias balsâmicos, confessa ter neuroses e "sociofobia". "A aglomeração típica do vaivém de Copacabana faz com que eu chegue em casa estressada. Não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas. Ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos", fala de lado, olhando chão e teto, sem encarar a câmera. É assim também que uma garota de programa, balançando muito e revirando os olhos, igualmente sem mirar o visor, resolve se assumir. Ou que outra decide contar que foi o pai que a obrigou a comprar o conjugado depois de ter sido mãe cedo. Sua experiência é expressa como "claustrofóbica" e "aterrorizante". "A vida das pessoas entra pelo basculante. Sei quando os vizinhos estão cozinhando, brigando...". E completa: "adoraria matar as pessoas que esbarram em mim, os ambulantes, o caos do trânsito". É bom lembrar que o Master fica a uma esquina da praia de Copacabana. Bairro repleto de facetas, populoso e campeão em gente morando sozinha, alegre e triste ao mesmo tempo, como o filme de Coutinho.
Há depoimentos fortes demais. Tão fortes, que depois deles a câmera passeia. Mostra a arrumação interna dos apartamentos, o que se vê pelas janelas, ou simplesmente acompanha um segurança andar por corredores, antes de pular para outro entrevistado. Isso acontece após uma senhora cantar "Nunca" (Lupicínio Rodrigues), a jovem "sociofóbica" mostrar um quadro seu, e um senhor bater no peito cantando "My way", sucesso de Frank Sinatra, que ele conta ter interpretado em dueto com o próprio. É como se Coutinho dissesse para o público: respira aí, não são as suas lágrimas que eu quero e sim seu entendimento, o seu "estar aqui". Afinal, como diz um entrevistado: "um homem não chora pelo simples fato de chorar". Não parece à toa também que os depoimentos mais contundentes estejam concentrados na primeira metade do filme. Tivesse ele invertido essa ordem e o filme teria outra cara. Terminasse ele na cena do "My way", quando mais da metade do cinema cai num pranto, e não haveria quem não comprovasse a emoção com que o filme impregna a platéia. Mas não, ele opta por encerrar o filme com uma das poucas imagens realizadas de fora do prédio. A câmera parada, quase sempre fechada no rosto do entrevistado, cede lugar ao voyeur, que da rua invade as vidas que traspassam pela janela. Até que uma mulher lentamente cerre uma cortina e a câmera deslize pela fachada do prédio até o breu total.
Com Edifício Master e outros, como Janela da Alma(João Jardim e Walter Carvalho) e Ônibus 174 (José Padilha), o documentário brasileiro deu mais um salto em 2002. Da idéia da amiga e professora, Consuelo Lins, parceira em Babilônia 2000, até a semana de filmagem no Master, onde o próprio Coutinho morou por um breve período há mais de 30 anos, houve muita pesquisa. Mas nada que desviasse a intenção pura e simples do premiado diretor de Cabra marcado para morrer (1964/1984) e Santo Forte (1999) de ouvir pessoas. Parafraseando a coragem de um morador do Master, que chora diante das câmeras ao lembrar a solidariedade de um antigo patrão, Coutinho e seu filme bem que podiam autodefinir-se: "Eu não me escondo. Eu sou esse."